Gay da favela não usufrui de avanços.

Ainda estamos lutando pela vida', diz ativista transexual.

É assim que Gilmara Cunha, ativista transexual baseada no Complexo da Maré, na Zona Norte do Rio de Janeiro, se posiciona ao ser questionada sobre as diferenças entre ser LGBT no "asfalto" da Zona Sul e na favela.

"Lá eles podem denunciar preconceito, agressão, e há até chance de punição. Aqui não temos como fazer isso. Estamos numa terra sem lei. A realidade é outra, os riscos são outros", diz a carioca de 31 anos, que no próximo dia 8 de dezembro será a primeira transexual a receber a Medalha Tiradentes, mais alta honraria fluminense, concedida pela Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) pelos serviços prestados à comunidade.

Defendida no plenário pelo deputado estadual Flávio Serafini (PSOL), a medalha representa um reconhecimento pelo trabalho da ativista. "Gilmara dá voz à população LGBT em favelas, que é tão ocultada. E cobra das diferentes esferas do poder público ações e respeito à essa população", diz o parlamentar.
Em entrevista à BBC Brasil, ela contou um pouco da sua história pessoal, que se mescla à do ativismo e do amadurecer da questão LGBT em favelas. 

Nascida no Complexo do Alemão e desde os três anos de idade moradora da Maré, ela foi coroinha e passou a adolescência numa fraternidade da Igreja Católica em Marília, no interior do Estado de São Paulo, até se assumir homossexual e posteriormente transexual.

Criadora, em 2006, da primeira ONG comprometida com a causa LGBT em favelas do Brasil, a Conexão G, Gilmara vem ganhando cada vez mais visibilidade, e hoje é conselheira nacional da juventude, além de participar de órgãos estaduais e municipais e ser frequentemente convidada para audiências públicas e palestras em diferentes partes do país, e até nos Estados Unidos e na Argentina.

Na Maré, já organizou seis paradas LGBT, que chegam a reunir 30 mil pessoas, mantém um ritmo constante de atividades e articula ações com novos grupos que surgem em diferentes favelas do Rio e já recebeu um prêmio do Ministério da Saúde pelo trabalho.

Para ela, que se apresenta como "pobre, negra, e favelada, com muito orgulho", os LGBTs de comunidades estão "longe de serem incluídos" pelas políticas públicas ou de "serem lembrados" por campanhas e centros contra a homofobia ou de promoção da saúde.

"Os gays e lésbicas favelados não são prioridade. As travestis e transexuais menos ainda", diz.

Andar de mãos dadas e se beijar? Eu diria que ainda é quase impossível dentro da favela. Pode acontecer, mas certamente haverá repressão, que pode ir desde um olhar atravessado até um xingamento. Eu, por exemplo, não ando com meu marido de mãos dadas.

E é claro que para as travestis e transexuais o preconceito sempre é maior do que contra os gays e lésbicas. Você pode ver que estão surgindo travestis reitoras de universidade, com posições de destaque, mas ainda é numa esfera de demarcar que estamos aqui e existimos. Ainda não se trata de amplitude de direitos, de maior respeitabilidade, de fato.

Como é um público muito vulnerável, há muitos assassinatos de transexuais no Brasil. No fundo, sabe-se que matar travesti não vai dar em nada, até porque existe esse estereótipo negativo, de assaltante, ladrão, marginal. Na verdade, a sociedade apoia quem mata travesti. Está havendo uma verdadeira extinção de transexuais, e a sociedade não está nem aí para isso.

Sobre a medalha e o futuro? Essa medalha representa para mim o fato de que não dá mais para ignorar os LGBTs dos territórios de favela.

Sempre me apresentei como favelada. Durmo e acordo com favela na minha boca. Sou moradora de favela, e não de comunidade, porque comunidade é um termo academicista. Chamar de comunidade não vai minimizar o que eu vivo dentro da favela, então eu sou favelada sim. Pobre, negra e favelada, com muito orgulho.

O meu sonho é criar um centro de referência dentro do Complexo da Maré, com todo tipo de atividades, aconselhamento, serviços e atendimento de saúde, e com local para denúncias de homofobia. Também com capacitação de agentes, para que possamos construir uma rede. Estou trabalhando para isso.